"Muito já se falou. Muito já se escreveu. Mas a experiência é única, e é minha... assim como também são únicas, e minhas, as minhas impressões digitais. Não as das minhas mãos, mas, as das solas dos meus pés" (Josué C. de Oliveira)



sábado, 8 de maio de 2010

"Aconteceu comigo... Milagres do Caminho"

... 06:30 da manhã. Deixei o albergue de Nájera para realizar a etapa que me levaria a San Juan de Ortega. Na etapa anterior já havia começado a sentir os efeitos nefastos de uma tendinite que, aos poucos, se instalara no tendão do meu pé esquerdo. 
Percorridos pouco mais de oito quilômetros, chequei num ponto onde o caminho original coincide com a rodovia e a caminhada, naquele trecho, segue perigosamente pelo seu acostamento. Iniciei uma subida íngrime, sobrecarregando ainda mais o tendão já machucado. Num certo ponto a dor passou de média para insuportável e, a cada cem metros caminhados eu me via obrigado a tirar a botina e massagear o tendão que, naquela altura, já começa a apresentar uma tonalidade vermelho-arroxeada, revelando a gravidade do problema. Sendo ex-atleta e professor de Educação Física, sabia da gravidade do problema e sabia também que a minha jornada corria o risco de acabar alí, antes mesmo de concluir a etapa até San Juan. Depois de um descanso mais prolongado tentei vencer mais uma distância, pelo menos até o topo do morro. A minha ousadia só piorou o problema. Sentado a beira do caminho comecei a orar, pedindo a Deus que me poupasse e concedesse a graça de poder concluir o caminho, ainda que, dadas as circunstâncias, não via como poderia vencer o trajeto ainda por vir. Entre desanimado e contrariado, estava calçando a botina quando vi surgir uma camionete que subia no mesmo sentido para onde eu estava indo. Já de pé, e com a mochila nos ombros, tentei dar mais alguns passos, apoiando o peso sobre o cajado. O motorista da camionete, vendo que eu estava em dificuldade, parou o carro um pouco mais a frente, no acostamento do lado oposto da rodovia. Aquela hora da manhã ainda havia uma bruma pesada que me impedia de ver, com clareza, a fisionomia do condutor do veículo. Ele acenava da janela do carro, num gesto de oferecer-me carona. Intimamente sabia que, ao aceitar a carona, estaria rompendo uma das regras de ouro da peregrinação do Caminho de Santiago, leva-la a termo a pé, em toda a sua extensão, superando as dificuldades que porventura surgissem no seu decurso. Mas a dor era muito grande e já havia me deixado vencer. Quando coloquei um dos pés sobre a rodovia para caminhar na direção do veículo e aceitar a carona, ouvi um "grasnado" forte que me chamou a atenção de imediato. Ao dar um segundo passo o "grasnado" e fez presente novamente. Olhei por sobre o capô da camionete e vi um Corvo pousado sobre uma placa que indicava, San Juan de Ortega 13 Km. Ao dar o terceiro passo o Corvo grasnou pela terceira vez. Sob aquele som estridente fui arrancado do desanimo que me acometia e, chorando copiosamente, agradeci o motorista e falei que não poderia aceitar a carona pois estava em peregrinação. Agarrado as minhas orações, me arrastei penosamente pelos treze quilômetos seguintes.
Onde está o milagre? Deixe-me contar.
 Nesse trajeto de treze quilômetros tive a companhia do Corvo, pousando de poste em poste e emitindo o seu grasnado toda vez que eu ameaçava fraquejar. Quando os meus pés finalmente tocaram o calçamento da estrada de acesso ao interior de San Juan, o Corvo deu uma revoada sobre mim e emitiu um último grasnado, voando em direção as montanhas. Fiquei olhando e chorando até perdê-lo de vista. Algumas pessoas, vendo o estado lastimável em que eu me encontrava, se dispuseram a me ajudar, acompanhando-me até o albergue de San Juan. 
Um segundo milagre aconteceu, ali mesmo, no albergue de San Juan. Mas esse eu contarei na próxima postagem. Ultreya!!!                     

terça-feira, 4 de maio de 2010

"O Caminho, A Mochila e o Peregrino"

"O Simbolismo da Mochila... uma bela lição"

Dentre os vários simbolísmos contidos no Caminho de Santiago de Compostela, nenhum outro possui maior significado do que aquele representado pela mochila que o peregrino carrega em suas costas.
Quando nos preparamos para uma viagem, colocamos dentro dela tudo aquilo que, ao nosso ver, é imprescindível para a jornada que está por iniciar. Em um dado momento da nossa caminhada, a mochila começa a pesar... pesar muito. 
A dor nos ombros e nas costas, efeito do peso exercido pela mochila, diária e constantemente, nos leva a refletir sobre o seu conteúdo. Será que o que estou carregando é realmente necessário? Com o passar do tempo, e acompanhado de uma estranha sensação de pesar, vamos abandonando pelo caminho aqueles elementos que se revelaram desnecessários. Caminhando, adquirimos a compreensão que a jornada é longa, e que não vale a pena sobrecarregar a mochila, assim, aos poucos, vamos tirando de dentro dela tudo aquilo que, num primeiro momento, nos parecia ser imprescindível, abrindo espaços para colacar dentro da nossa mochila outros elementos que se revelam muito mais importantes e vitais para a nossa viagem.
Iniciamos a nossa viagem quando nascemos, e a jornada somente é dada por conluída  quando fechamos os nossos olhos pela última vez.  A pergunta que não que calar é; O que temos colocado dentro da nossa mochila de viagem? Será que não estamos carregando coisas demais, e desnecessárias? Nossos rancores, nossos ódios, nossas frustrações, nossa incapacidade de perdoar os outros e a nós mesmos, são elementos que pesam e desgastam o espírito. Durante a minha jornada pude, por diversas vezes, ver a face de Cristo. Ela esteve estampada nos rostos de cada pessoa que, ao me reconhecer peregrino, correram em minha direção para oferecer um copo d'água, uma fruta, um pedaço de pão, ou simplesmente, estender a mão num gesto de abençoar a minha passagm com o sinal da cruz. E assim fui indo... caminhando, cantando e aprendendo a lição...             

"A Mística do Caminho de Santiago"

Afinal, o que torna o Caminho de Santiago tão diferente de qualquer outro caminho?
Esta é uma pergunta que me tem sido formulada desde que concluí a minha jornada.
 Respondo então. O que o torna tão diferente é a intenção e a energia deixada por aqueles que aceitam o convite para percorre-lo livremente... em toda a sua extensão. Ninguém vai ao caminho sem que, intimamente, já não o esteja percorrendo.
A pergunta que se segue é velha conhecida. Como posso percorrer um caminho sem ter estado lá antes?
Para iniciar a sua jornada não é necessário estar no caminho fisicamente. Numa jornada deste tipo, são as suas inquietudes e os seus questionamentos que produzem os elementos necessários para colocá-lo no caminho. Caminho este que, num dado momento, se torna o centro da sua própria existência. Quando isso acontece a sua jornada espiritual já se iniciou... você já está no caminho, então, percorre-lo fisicamente é só uma questão de tempo.
   O que você encontrou no caminho? Esta é a pergunta que normalmente sucede a anterior.
A jornada me remeteu a três momentos distintos. Num primeiro momento fui movido pela ansiedade da partida, tomado que estava pelo espírito de aventura, ansioso para ver o que iria se revelar no decorrer da caminhada... o que me estava reservado logo após a próxima curva. Num terceiro momento, ao me aproximar do final da jornada, fui movido pela ansiedade da chegada, sob a perspectiva de poder saborear a deliciosa sensação de ter vencido o grande desafio, de saber que fui capaz de realizar um projeto grandioso em minha vida e, sobretudo, a possibilidade de voltar para casa e rever as pessoas que amo.
A grande experiência é reservada para o segundo momento. Este segundo momento passa a existir quando o primeiro já deixou de exercer os seus efeitos, e a força de ânimo contida no terceiro ainda não pode ser sentida. Nesse momento, muito longo vale frisar, percebi que, além da mochila presa as minhas costas, dava carona a outros dois indivíduos.
O primeiro assentava-se sobre o meu ombro direito. Era um Anjo que, falando mansamente ao meu ouvido, me estimulava a dar o passo seguinte. O segundo, sentado sobre o meu ombro esquerdo, era um demônio que gritava o tempo todo em meu ouvido, plantando em meu coração o desânimo e a sensação de que eu seria incapaz de vencer o desafio.
Com o passar do tempo aprendi a administrar e a compreender o aspecto dual da existência humana. Lembrei da aula de física cujo enunciado diz: "o universo equilibra-se perfeitamente entre as forças de atração (força positiva) e repulsão (força negativa). É, pois, no embate constante entre estas duas forças antagônicas que o universo inteiro alcança o seu ponto de equilíbrio.
Para aquele que peregrina, o equilibrio se dá quando ele se torna uno com o próprio caminho... quando ele e o caminho se tornam um só, quando as vozes, seja do Anjo ou do Demônio, cessam por completo e o coração do viajante experimenta a quietude interior. Nesse momento, o único som perceptível são os seus próprios passos.              

segunda-feira, 3 de maio de 2010

"O Caminho de Santiago do Campo de Estrêlas"

   Conta a história que, no ano 813 d.C, um ermitão de nome Pelayo certa feita campeava o seu pequeno rebanho de ovelhas. A noite já havia bebido os últimos lampejos de sol daquele dia, quando, sem um porquê mais específicoteve a sua atenção voltada para o firmamento. Com os olhos fixos no céu, deparou-se com uma trilha luminosa... um extenso campo estreito formado de incontáveis estrêlas. Homem simples e temente a Deus, intuiu aquela visão como um chamado... Um chamado que o levaria a uma importante revelação.
   Deixando o seu rebanho em local confinado, reuniu algumas parcas provisões e se colocou a caminho. A jornada se estendeu por toda a noite e, pouco antes do amanhecer, aquela via iluminda por pequenas estrêlas se desfez numa chuva incandescente e prateada. Cansado da longa caminhada se recostou numa formação de pedra e adormeceu. O calor do sol o despertou e, ao abrir os olhos, percebeu que a sua jornada o havia trazido até a um antigo cemitério. Haviam vários túmulos aqui e ali, alguns já parcialmente cobertos pela vegetação do lugar. Vagava curioso por entre os túmulos até que um deles lhe chamou a atenção de modo especial. Bordejando a tampa do túmulo haviam inscrições em latim primitivo sendo que, numa das cabeceiras da tampa podia-se ver adornos em baixo relêvo na forma de Conchas Vieira (Conquilles de St. Jacques), como eram conhecidas. Seguindo até um vilarejo próximo, Pelayo procurou um padre local e contou a sua história. O padre encontrou sinceridade naquele homem e levou a história ao conhecimento do Bispo Teodomiro que, prontamente se dispôs a ir até o local mencionado pelo ermitão.

   Ao traduzir as incrições estampadas na tampa daquele túmulo, descobriram que aquela tumba acolhia os restos mortais do Apóstolo Tiago. Mais tardiamente foram encontrados registros da passagem do Apóstolo Tiago por terras espanholas, nas províncias de Zaragosa, Galícia e outras.

   A notícia se espalhou por toda a Europa como um rastilho de pólvora. Na cidadela de St. Jean Pied de Port, à época, um pequeno vilarejo de características medievais socado no sopé dos Pirineus franceses, Frei Aymeric, homem de muita fé, soube da boa nova e empreendeu a longa jornada, a pé, através dos 840 quilômetros que separam a cidadela de St. Jean Pied de Port até a atual cidade de Santiago de Compostela, dando inicio a rota de peregrinação que haveria de se tornar uma das mais importantes e festejadas rotas de peregrinação do mundo ocidental.